Memorias das Eras Hiborianas – O monge e a maldição do futuro

Houve uma ocasião em que me recordo, tão viva como estivesse, quando recolhia os tributos ao longo da costa, escassos em tempos sem deuses ou bênçãos. Não pude resistir a buscar tesouros mais brilhantes, algo mais que as poucas jóias que dispunha em meus aposentos de capitã. Ordenei então que preparassem o Tigresa para singrar os mares.

Como se fizesse alguma diferença, mais do que isso, em respeito caduco aos deuses dos Mares e à Senhora da Morte, oras eu sou Shemita, nunca é demais estar bem com os deuses. Ofertei uma peça de ouro ao mar, e um punhado de sangue à morte. Naquela noite todos bebemos e gargalhamos com as ondas, envoltos pelas brumas da morte. Antes do amanhecer tremulava nossa bandeira ao sabor dos ventos, porque descanso é para os fracos.

Desta vez iriamos mais longe. Os dias navegando não me aborrecem, e nem à tripulação, desde que haja confraternização, vinho, cerveja, e um mínimo de alimento também. Piratas sabem aproveita a vida. Troquei a realeza por esta vida. Quando então vingada, sequer pestanejei ante a deixar meu trono para voltar aos mares e as aventuras que colecionei desde que Tigresa aceitou meu comando. Enfrentamos tempestades, monstros, homens e criaturas, mas seguimos firme o curso. Aqui vivi e fui sepultada, não poderia ser diferente.

Muitos dias de mar, outros tantos de pequenas incursões e saques, muito vinho e tonéis de cerveja depois, aportamos em uma terra de mercadores.

 

Barracas por todo lado. O som da música exótica e das pessoas, de pássaros e a brisa quente do deserto.  Terra de objetos e artefatos, sem duvida de tesouros mais escondidos.

Estava decidida a achar novos despojos para minha coleção, saquear um tesouro grande e deixar que meus homens partilhem os despojos, guardar uma única peça para lembrar e manter vivo o espirito curioso e aventureiro. Fui gananciosa, mas nunca guardei todo ouro e despojos como um dragão preguiçoso. A vida é curta, e o espirito nada carregará.

Comprei uma coisa ali, outra aqui, avaliando o potencial da cidade, espiando aqui e ali, ouvindo conversas, atrapalhando uma ou outra negociação. Entendi tratar-se de um mercado mediano, até ouvir sobre um mecenas, de grandes riquezas, que patrocinava o comercio, abastecendo o estoque de curiosos artefatos. Alguns eu nem saberia dizer a serventia.

Sou amante das artes, logo não foi difícil encontrá-lo. Casa de pedra, janelas com ricos panos coloridos esvoaçantes, cheiro de óleos perfumados. Parapeitos com flores tão purpuras como o sangue de criaturas magicas. Totalmente aberta e sem guardas. Sem guardas significa Magia. Mas isso nunca me impediu de prosseguir. Entrar seria fácil, sair provavelmente não. O homem mais abastado da cidade? Valia o risco.

Uma escrava vinha em minha direção com uma luxuosa bandeja de comida, e outra trazia uma ânfora muito delicada de material transparente como nunca vi. O liquido dentro era cor de ouro.

– Ora se não temos visitantes inesperados….

Virei tão rápido quanto um gato, de adaga em punho …

– Calma adorável forasteira, aqui somos de boa vontade! Uma cidade livre e de mercadores. Sem ladrões.

Essa ultima frase cuidadosamente elaborada, uma ameaça velada em palavras ditas tão suavemente …

– Venho em busca de tesouros e não ficarei mais do que necessário, oh luxuoso mecenas. Aponte a direção do ouro e meus companheiros e eu partiremos antes que termine sua refeição. Me ameace novamente e estará morto antes de sentar a mesa. Não sou adorável nem você tão gentil, homem …

– Calma, calma venha desfrutar de uma refeição, tomar um banho e descansar em lençóis e almofadas dignos de uma deusa …

– Me aponte a direção ou será em sua casa que terei meu premio. De onde vem as mercadorias expostas pelos comerciantes?

Percebi a hesitação do homem. Percebi mais ainda que uma das escravas havia sumido …

– Bem … existe uma lenda …

Tentando ganhar tempo hein? – Deixa disso homem que não tenho tempo para lendas …

– Mas existe mesmo … e você desejará conhecê-la se busca tesouros incomparáveis às quinquilharias que vendemos …

Com a escrava retornou uma bruxa. Mulher de vestes exóticas, olhos vermelhos, pele brilhosa, já tinha visto outras da tribo das feiticeiras de Acheron …

– Saia daqui bruxa …

Maldição ia levar mais tempo do que eu pensava, então certamente que iria cear após matar os dois. E talvez libertar as escravas.

Começou a ressoar o cântico maligno, fui mais rápida e certeira ao arremessar minha adaga …

– Muita conversa e pouca informação, ultima chance de sair daqui respirando homem …

Mas era um pouco tarde para um palerma daqueles … saiu correndo e gritando por socorro. De certo que jamais iram enfrentar alguém com a proteção de uma feiticeira daquelas, tudo tem a primeira vez.

– Demônios o levem … ainda vai me fazer correr.

Derrubei-o e travamos um embate físico que terminou antes de começar. E mais um cadáver estava no pátio.

As escravas postaram-se para pedir clemência.

– Senhora que nossa vida seja poupada, e lhe direi o que sei.

Por que não? Com fome uma pausa para comer e beber não era má ideia. Enquanto isso ela me contou sobre as caravanas que misteriosamente viajavam ao deserto, e voltavam carregadas de objetos e comida.

– Mas que não se engane, pois não existe cidade no deserto, a não ser por bruxaria Senhora …

A segunda escrava falou do Monge, um nome constantemente recitado com respeito e temor pela feiticeira morta.

– Oras se não vou até o fim desta aventura. E fui.

Organizei o navio, abastecido de suprimentos, e parti para o deserto. Os relatos indicavam um dia ou dois de viagem, outro tanto igual para volta, sempre em direção oeste.

– Oras e que diabo é um Monge? Criatura, homem, bruxo, guerreiro, ou mito?

Saberia a resposta.

Sol quente de dia, mais difícil seria o frio do deserto a noite, e foram mais léguas até chegar a um estranho e pequeno lago, ao entardecer. Uma tenda acolhedora para os viajantes. Um tonel de água e um rico tapete. Passar a noite pareceu a decisão correta na hora…

Só pareceu porque todos os meus instintos estavam contra …

A noite no deserto não é produtiva para quem nem sabe o que está procurando. Foram léguas e nem uma alma a vista …

– Aos diabos se for uma armadilha. Ficarei.

Repousei, e dispus os suprimentos para a refeição. Lutava para permanecer alerta mas os olhos teimavam em pestanejar, pestanejar…

O vento começou a se agitar … semi desperta, a pele ressentida pelo frio … Corsários são presa fácil no deserto. Comecei a me preocupar quando achei ter ouvido sussurros ao invés de vento. Meus companheiros de viagem dormiam refastelados e inebriados por vinho.

– Volte …  – Sussurava a voz.

Era isso mesmo?

E eu estava de pé com espada em punho ameaçando o vento e xingando até a ultima geração do mercador.

– Volte ou diga a que veio.

– Vim em busca do tesouro do Monge, e não será o vento a me enxotar, cão … Saia para onde eu possa vê-lo seu inútil …

– Você ruge ameaças tolas mulher, mas é sincera.

– Ao amanhecer venha me conhecer, e discutiremos se sua vida merece continuar, ou retorne pelo caminho que veio.

– Quem ousa me desafiar?

– Quem ousa vir ao Monge para saquear tesouros?

E foi só isso por mais que meu sangue fervesse em desespero por uma batalha.

Contrariada não havia mais nada a fazer e aceitei esperar o sol nascer. Acordei meus companheiros com mais brutalidade que o necessário, mau humor de quem ficou de espada em mãos.

Quem me conhece já sabe, então aqueles brutamontes levantaram como criancinhas e empacotamos tudo.

Supreendentemente se via ao horizonte duas torres.

Era simplesmente impossível que não as tivesse visto no dia anterior. Amaldiçoado seja aquele Monge. Ia engasgar no próprio sangue. Presunçoso. Tesouros existem para ser saqueados e ele ia aprender a lição.

As torres estavam a poucos metros agora. De espada em punho nos aproximamos.

Um homem saiu da torre menor.

– Eis que chega a forasteira mal intencionada.

– Vim buscar os artefatos que os mercadores não carregam, suas riquezas serão minhas …

– Minha cara, sabe tão pouco do tesouro que defendo voluntariamente com minha própria vida … Os artefatos que os mercadores aqui coletam são lixo que cedo para abastecer o comércio. Minha história tem milhares de anos, e essas duas torres e seus subterrâneos estão cheios de coisas … Se veio por isso, é livre para vasculhar e levar o que quiser.

– Basta demônio em forma de homem, mostre-me seu tesouro ou perecerá pela minha espada.

– Não confio em estranhos. Antes da civilização minha ordem já estava aqui …

Nem esperei terminar, meus companheiros avançaram em fúria. Segui-os ultrajada pelo desafio. Que leve eras ou não, tudo morre.

Antes de eu chegar perto meus homens estavam desacordados no chão. Inflamou-me a ira, e parti para o ataque. Ao chegar perto notei que o homem usava um bastão. E era rápido com ele, eu só tinha tempo de esquivar e meus golpes se perdiam no ar. Não sei quanto tempo durou o embate, mas finalmente fui pega em um vacilo e minha espada foi parar atrás dele.

– Cão! Posso matar-te com as mãos … arfando parti em carga contra aquele homem que sequer parecia respirar.

– Tua persistência contou a teu favor e por isso terá uma chance de falar, desde que escolha melhor as palavras mulher.

– Qual tesouro vale a sua vida, Monge? Que diabo de criatura és?

– Um Monge é um apreciador da vida, acima de tudo um defensor do valor da coragem e honestidade, mulher afoita. Os Tesouros mais valiosos são o registro da alma dos homens. Não são forjados de metal nem dos elementos da terra, não parecem valiosos em si e foram feitos a partir de ideias, materializados em papel. Nada é mais valioso que isto. Ofereço-te a chance de conhecê-los e ser incorporada ao tesouro.

– Homem de estranhas palavras e lutador que não mata. Não serei escrava ou exibida em uma coleção. Morrerás hoje ou morrerei tentando matar-te. Empunha teu bastão!!!!

Acordei estava em uma sala repleta de pergaminhos e coisas indescritíveis. O homem curvava-se sobre uma mesa com um estranho pequeno objeto em mãos.

– Este é um lugar mágico, Corsária. Atemporal. Aqui se conhece o futuro e passado, a imortalidade que as eras não apagarão. Cidades sumiram para sempre, ossos se desfazem, milhões viveram e foram esquecidos, os que aqui são registrados terão um lugar para todo o sempre e suas almas viverão para contar histórias. Esse é meu tesouro.  Eu sou o Monge e te dou a vida eterna. Chegue mais perto. Seus companheiros estão vivos e a aguardam do lado de fora.

– Que magia ou feitiço você pratica homem?

– Aprenda a confiar Corsária, e verá como se tornará lenda e imortal, minha cara…

Na mesa havia um papel, com estranhas marcas escritas e um desenho de uma mulher vestida como eu, aquilo parecia magia negra …

– Essa é você, Bêlit, e já vi a sua alma, sua historia. Vá em paz, serás uma lenda e imortal. Todos que forem dignos conhecerão o seu nome no futuro.

– Permitirei que vasculhe e leve quaisquer artefatos. Você contribuiu com o registro e meu tesouro particular.

Eu queria reagir mas alguma coisa me causava simpatia àquela figura. Talvez receio também.

– Para que lembres de mim, reservo-te a imagem do futuro. Desejo-te paz.

– Que homem cede tesouros sem lutar para defendê-los?

– Aquele que aprecia a vida e não seus despojos materiais. Quando se vive tanto quanto eu, uma boa história para o espirito é melhor que qualquer outra coisa. Há o que se guarda, há o que se compartilha, há o que se descarta, tudo a seu tempo, mas ainda que tudo for despojado, o que está na memória, o conhecimento te conduzirá em paz para todo o sempre, feliz é quem isso possui.

Nunca antes me deparei com um Monge, mas parecia um homem sábio, um sacerdote que sabe lutar mas que não mata, não me senti confortável em tentar derrotá-lo novamente.

Feito isto ele estendeu a mão para uma porta entreaberta, onde se viam pilhas de objetos a perder de vista, apesar de ser uma torre o recinto parecia infinito.

– Vá e leve o que precisa, deu-me sua historia, concedo tua pilhagem.  E este é meu legado a você.

 

– Seu futuro e passado, sua vida e morte serão imortais. Prometo.

E desapareceu enquanto eu olhava para aquele papel. Ficamos horas para escolher o que levar, e partimos …

Muitos anos depois eu ainda tinha aquele punhado de papel estranho no navio. Tesouro? Definitivamente não, mas mesmo assim o mantive, também nunca mais esqueci o único da espécie monge que conheci, espécie ou raça estranha de homens que oferecem tesouros.

E mais eras ainda depois, agora fantasma, percebo que meu futuro estava lá, retratado em escrita estranha e desenhos. Se sou uma lenda? Me responda você que está vivo.

 

 

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